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domingo, 22 de novembro de 2009

As lições de Ricupero e o apagão

No passado a política externa praticada pelo Itamaraty era chamada de "punhos de renda", caracterizada pelo comportamento soberbo, frio, calculista, sem gestos e sem emoção de seus diplomatas. Com a redemocratização o estilo mudou, mas os diplomatas preservaram a conduta discreta, vestindo as palavras de argumentos técnicos e, por vezes, duros, mas fundamentados na experiência, no conhecimento, no saber e deixando para os governantes a adjetivação dos discursos.

O embaixador Rubens Ricupero é dessa geração e seu desempenho na diplomacia por quase meio século ganhou respeito de veteranos e jovens. Nos últimos dias, em duas entrevistas ao Estado, Ricupero ensinou importantes lições de críticas à política externa do governo Lula, com que o chanceler Celso Amorim certamente concorda, mas não dará curso algum porque foi capturado pelos interesses políticos imediatos da eleição em 2010. Afinal, sua filiação ao PT mostra que também ele tem pretensões eleitorais.

À impetuosidade e ao oportunismo político dos presidentes Lula e Hugo Chávez de incorporarem a Venezuela ao Mercosul na marra e às pressas, Ricupero respondeu com um alerta sobre problemas que podem ocorrer no futuro. Em acordos de comércio - adverte -, o país que se dispõe a ingressar precisa antes discutir suas regras e se comprometer a cumpri-las. Foi o que ocorreu com Portugal e Espanha quando aderiram à União Europeia, em 1986, depois de muitos anos de negociação.

A Venezuela acaba de se tornar o quinto membro do Mercosul, sem discutir o conjunto de normas de comércio, muito menos o acordo da Tarifa Externa Comum (TEC) - praticado no comércio com terceiros países - que Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai levaram anos negociando para aprová-lo. Enquanto no Congresso a oposição reclamava de falta de democracia na Venezuela, Ricupero foi direto ao ponto da questão.

O coronel Hugo Chávez tem dado provas corriqueiras de não ter vocação para viver em harmonia coletiva, muito menos cumprir acordos que atrapalhem seus objetivos políticos. Seu estilo é afastar barreiras na marra e no grito. Se a mídia lhe faz oposição, ele fecha emissoras de TV e rádio. Se sua popularidade cai, ele inventa uma guerra para reconquistá-la com falsos apelos patriótico-nacionalistas. Rompe contratos unilateralmente, nacionaliza empresas sem indenizá-las pelo investimento feito. Enfim, não gosta de respeitar regras e acordos. Muito menos os que não conhece nem sequer discutiu seu conteúdo - como o Mercosul. O chanceler Celso Amorim sabe disso e dos riscos de desmoralização quando chegar o momento em que Hugo Chávez mandar o Mercosul às favas.

A segunda crítica do embaixador é ainda mais séria e grave. Por mais de 40 anos atravessando vários governos, ocupando cargos importantes dentro e fora do País, Ricupero tem perfeita noção e consciência de que a função do diplomata é servir aos interesses do Estado (assim, com letra maiúscula), não de governos que se renovam e sucedem a cada quatro anos e trazem objetivos políticos próprios.

A preocupação com a miscelânea que o governo Lula costuma fazer, confundindo razões e interesses de Estado com os do governo e do PT, levou Ricupero a criticar: "O governo está moldando o perfil com o qual quer entrar para a História. A política externa tornou-se mais identificada ao governo e também ao seu partido, o PT. Não está mais identificada ao Estado", afirmou, em entrevista a Denise Chrispim Marin, publicada na edição de domingo passado. E cita como exemplos do dedo de Lula e do PT a visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad; a posição do Brasil contra a Colômbia, não como moderador no conflito com a Venezuela; e o ingresso intempestivo e descabido da Venezuela no Mercosul.

Aos autoelogios de Lula e do PT à política externa, a experiência de Ricupero responde: dos três eixos da diplomacia - uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU para o Brasil, a conclusão da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) e a preponderância brasileira na América do Sul -, todos fracassaram.

É verdade que o mundo, sobretudo a velha Europa, tem um certo fascínio pela figura e pela liderança de Lula, do operário que chegou ao poder e conseguiu exercê-lo. Diferente de Lech Walessa. Por isso o desculpam em muitas coisas, mesmo no mais primário amadorismo de propor, em 2003, a criação de um fundo mundial para combater a fome arrecadando impostos sobre a venda de armas no mundo. Ou seja, mata-se a fome no planeta incentivando a humanidade a se armar. Que tal?

O apagão político - O governo Lula divagou, mudou versões, criou confusão e não conseguiu convencer ao explicar as razões do apagão. Tampouco dar garantias críveis de não repetição de outros desastres no futuro. Mas nem governo nem oposição focaram um vício de origem às falhas do setor elétrico que atravessa governos e espalha incompetência: o loteamento, entre políticos e apadrinhados, de cargos que deveriam ser ocupados por técnicos de carreira experientes e preparados.

Com exceção de Dilma Rousseff, no início do governo Lula, todos os demais ocupantes da pasta de Minas e Energia têm origem política - do DEM, no governo FHC, e do PMDB (leia-se José Sarney), na gestão Lula.

Se ficasse só nos ministros, o estrago até seria mais controlado. Mas não. O método é ampliado para as diretorias de estatais elétricas e mesmo para funções de segundo e terceiro escalões, em que os políticos enxergam alguma forma de extrair vantagens para seus partidos.

Além de péssimo efeito entre funcionários, derivado do desprezo pelo critério meritório para ganhar promoções e ascender na profissão, o loteamento político cria insegurança entre quem ocupa funções técnicas sempre que precisa contrariar ordens do incompetente chefe. Este, por ter poder de mando, mas não capacidade e preparo para exercer a chefia, sente-se reduzido quando contestado e acaba dando ordens desastradas.

Nesse ambiente vale a pergunta: de quem partiu a ordem para desligar a Usina de Itaipu na noite do apagão?

Suely Caldas
ESTADÃO

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Yoani em Berlim

Você ainda não está autorizada a viajar.

- E por qual razão?

- A razão desconheço.

- Não tenho nenhuma causa legal pendente, não estou sendo processada perante um tribunal.

- No momento, você não pode viajar."

- Você sabe que esta é uma violação de meus direitos constitucionais. É como o direito à educação e à comida: o direito de poder se mover.

- No momento, você não pode viajar.

- Esta instituição que você representa, um dia acabará. Meus netos não viverão nessas condições. Este país é um grande cárcere, com uma fronteira ideológica, uma fronteira partidária. Os cidadãos aqui são julgados por cores políticas. Mas isso um dia acabará. Porque esta nação nada tem que ver com uma ideologia, nem com um partido. Esta nação existiu e existirá antes e depois de vocês."

Esse diálogo, cuja íntegra está no blog Generación Y (http://www.desdecuba.com/generaciony), foi travado em 12 de outubro entre a blogueira cubana Yoani Sánchez e uma funcionária do Escritório de Imigração de Havana. A proibição de viajar, reiterada há mais de ano, impediu Yoani de receber o Prêmio Maria Moors Cabot, concedido pela Universidade de Colúmbia, e de comparecer aos eventos de lançamento de seu livro De Cuba, com Carinho, publicado pela Editora Contexto, que se realizam nestes dias no Brasil.

Yoani faz um dos blogs mais acessados do mundo, que é bloqueado na restrita internet cubana. Ela não se enquadra no jogo bipolar da política de seu país. Por erguer a bandeira da liberdade de expressão, é acusada pelo regime castrista de servir a "interesses contrarrevolucionários estrangeiros". Por registrar que o embargo econômico americano funciona como pretexto útil para a ditadura dos Castros, é acusada pelo núcleo duro da oposição cubano-americana de Miami de operar para o serviço de inteligência de Cuba. A resposta encontra-se no seu livro, na forma de uma citação do compositor antifranquista espanhol Joaquín Sabina: Siempre que lucha la KGB contra la CIA, gana al final la policía.

O Muro de Berlim, ícone desmoralizante do "socialismo real", caiu há 20 anos, mas uma réplica anacrônica subsiste ao redor da Ilha de Cuba, sob a forma da "fronteira partidária" denunciada por Yoani. Cuba não tem relevância econômica ou estratégica, mas possui colossal importância simbólica: o "grande cárcere" do Caribe representa, ainda hoje, a pátria ideológica da esquerda latino-americana. O episódio do lançamento do livro de Yoani no Brasil é uma aula inteira sobre o tema.

O consulado cubano de São Paulo recusou-se até mesmo a protocolar um convite da editora à autora para os eventos de lançamento do livro. Eduardo Suplicy (PT-SP), desafiando a ortodoxia de seu partido, pronunciou discurso no Senado solicitando a concessão da autorização de viagem. Por iniciativa de Demóstenes Torres (DEM-GO), o Senado dirigiu à Embaixada de Cuba um convite para Yoani debater o livro em audiência pública. Fernando Henrique Cardoso somou-se ao convite, por meio de carta ao governo cubano em que solicitava pessoalmente a permissão de viagem. Mas Havana nem sequer ofereceu uma resposta aos variados apelos - que não incluíram nenhuma voz do governo brasileiro.

Cuba e Brasil são signatários do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, que consagra o direito de todos de sair de seu país e retornar a ele. A Constituição determina que o Brasil rege suas relações internacionais pelo princípio do respeito aos direitos humanos. Nada disso importa para Lula, que qualifica Fidel Castro como o "único mito vivo da história da humanidade", nem para Celso Amorim, que sempre escolhe a palavra "democracia" para se referir a Honduras e a palavra "soberania" para se referir a Cuba. Nenhum dos dois emitiu uma mísera nota de apoio ao convite dirigido pelo Senado à escritora cubana.

O silêncio é amplo e sólido. Tarso Genro, o ministro do Arbítrio, deportou ilegalmente boxeadores cubanos ameaçados de perseguição, mas não moveu um dedo pelo direito legal de uma escritora independente falar ao público brasileiro. Paulo Vanucchi, chefe de um Ministério que ostenta no seu nome os direitos humanos, loquaz na defesa do estatuto de refugiado político do italiano Cesare Battisti, não pronunciou uma única palavra sobre o direito de viajar da cubana cujo "crime" é expressar suas opiniões. Eles não têm vergonha?

Yoani não vem ao Brasil porque o regime castrista pratica um abominável intercâmbio de direitos por fidelidade ideológica. A submissão ativa ao Partido é recompensada por um emprego cobiçado no setor turístico, pela almejada licença para comprar um automóvel ou pela preciosa autorização de viagem ao exterior. A coragem de dissentir é punida com a cassação tácita, jamais justificada, dos direitos inscritos na lei.

Num país que julga seu cidadãos "por cores políticas", ninguém é verdadeiramente cidadão. Foi isso que Yoani disse no Escritório de Imigração, ao evidenciar o caráter totalitário de um regime que faz a nação se identificar com uma ideologia e um partido.

Os intelectuais de esquerda brasileiros, com honrosas exceções, pensam o mesmo que a ditadura castrista sobre a opinião independente. Anos atrás, num abaixo-assinado, solicitaram a demissão de um articulista que ousara criticar as ideias do palestino-americano Edward Said e há pouco fizeram um escarcéu coletivo em torno de uma palavra fora de lugar no editorial de um jornal. No caso de Yoani, porém, acompanharam o eloquente silêncio de Lula e seus ministros.

A sangrenta consolidação do stalinismo na URSS foi amparada por manifestos emanados da pena de intelectuais "humanistas" como Louis Aragon, Romain Rolland e Paul Sweezy. Nossos intelectuais de esquerda são os herdeiros legítimos deles. A régua com que medem direitos e liberdades é feita do mesmo maleável material ideológico que sustenta o Muro de Cuba.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia
Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

ESTADÃO

sábado, 3 de outubro de 2009

O vazamento da prova do Enem

Com a divulgação pelo jornal O Estado de S. Paulo do vazamento da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que seria realizada neste fim de semana por mais de 4,1 milhões de alunos em 1.826 cidades, o Ministério da Educação (MEC) adotou a única decisão cabível: cancelou a realização das provas. E, apesar de o ministro Fernando Haddad ter anunciado que o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep) - o órgão responsável pelo Enem - irá trocar a prova viciada por uma prova substitutiva previamente elaborada, prometendo aplicá-la dentro de 45 dias, especialistas afirmam que, em face das gritantes falhas no esquema de segurança do MEC, a nova versão também poderia estar comprometida.

Os repórteres Renata Cafardo e Sérgio Pompeu tiveram acesso à prova do Enem no começo da noite da última quarta-feira. E, depois de examinarem cuidadosamente a parte relativa a linguagens e códigos, principalmente as questões que envolviam personagens de tiras de conhecidas histórias em quadrinhos, como Mafalda e o gato Garfield, versos de Gonçalves Dias e de Carlos Drummond de Andrade e o filme Touro Indomável, de Martin Scorsese, levaram os fatos delituosos ao conhecimento do ministro Haddad. Na madrugada da quinta-feira, o ministro e o presidente do Inep, Reynaldo Fernandes, reconheceram oficialmente o vazamento, cancelaram a realização da aprova e pediram à Polícia Federal a imediata abertura de inquérito criminal.

Aplicada desde 1998 e concebida para induzir ao aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio e propiciar a democratização do acesso ao ensino superior, a prova do Enem é o maior exame simultâneo do País e a versão de 2009 é o mais concorrido de todos os mecanismos de avaliação do MEC. Isto porque, além de aferir o grau de conhecimento dos estudantes que terminam o ensino médio e de selecionar os bolsistas do ProUni, a partir deste ano o exame passou a valer para certificar a conclusão do ensino básico por pessoas com mais de 18 anos e a ser utilizado como vestibular unificado, em etapa única, para 24 das 55 universidades federais.

Até as maiores instituições de ensino superior do País, como a USP e a Unicamp, aceitam os resultados do Enem na composição da nota em seus processos seletivos. Por isso, mesmo sendo optativo, o Enem de 2009 teve o dobro do número de inscritos na prova do ano passado. Pelos levantamentos feitos pelo MEC e pelo Inep com base no último Censo Escolar da Educação Básica, o índice de inscrição no Enem já atinge cerca de 80% dos estudantes que estão na 3ª série da rede pública e privada de ensino médio.

Apesar da experiência já acumulada pelo Inep na aplicação do Enem, a prova de 2009, ao contrário do que ocorreu nos anos anteriores, começou a apresentar problemas desde que começou a ser elaborada. Quando o MEC propôs às universidades federais sua utilização como vestibular unificado, os pedagogos divergiram quanto ao conteúdo das questões, à abordagem pedagógica e aos critérios de correção da prova. Depois, o Inep estimulou as inscrições pela internet, mas o sistema de informática do MEC não estava preparado para atender à demanda. Em seguida, a greve da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT) prejudicou a entrega dos cartões de inscrição aos candidatos. A definição dos locais da prova também gerou problemas, pois muitos candidatos teriam de se deslocar para cidades distantes até 330 quilômetros de suas residências. Ao todo, o Inep recebeu 6 mil pedidos de estudantes para trocar o local da prova. Por fim, o MEC acabou montando um confuso e ineficiente sistema de informações aos alunos, recorrendo à internet, a "torpedos" por meio de celulares, a chamadas telefônicas convencionais e a cartas. E estas tiveram problemas de remessa, por erros primários da listagem de endereços, que, por razões inexplicadas, não ficou a cargo do Inep.

Na realidade, todas essas dificuldades apenas confirmam o que apontamos em diversos editoriais. No conteúdo, as profundas mudanças introduzidas no Enem de 2009 foram oportunas e merecem aplauso. Mas foram implementadas a toque de caixa, sem planejamento adequado, com o objetivo de usá-las como trunfo político a serviço de um projeto eleitoral. Tanto açodamento só podia resultar em confusão, coroada com o vazamento da prova.

ESTADÃO

sábado, 26 de setembro de 2009

O Brasil busca uma saída

Boquirroto, como sempre, o caudilho Hugo Chávez já contou como aconselhou e auxiliou o presidente deposto Manuel Zelaya a voltar a Honduras e a buscar abrigo na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa. Forneceu os meios para a viagem e participou pessoalmente de uma operação de despistamento, para levar o governo de facto de Honduras a crer que o presidente deposto estava indo para Nova York, quando seu destino era seu próprio país. O que ainda não está claro é se Hugo Chávez deu conhecimento de seu plano ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao Itamaraty ou se decidiu colocar o Brasil numa situação delicada - numa verdadeira armadilha - sem avisar ninguém, dando por bem que pode manobrar à vontade o seu aliado brasileiro. Nenhuma dessas hipóteses é lisonjeira para o governo petista.

O fato é que o governo brasileiro se tornou prisioneiro de suas próprias posições. Ao liderar o movimento pela volta de Manuel Zelaya ao governo - do qual foi deposto em processo conduzido pela Suprema Corte e pelo Congresso e concluído desastradamente pelas Forças Armadas, para evitar que o presidente desse o primeiro passo para a reeleição, expressamente proibida pela Constituição do país -, em nome da defesa da democracia na America Latina, o presidente Lula da Silva caiu na armadilha armada pelo maior inimigo da democracia como ele, Lula, a entende. Agora, surge perante o mundo, que aprendeu a respeitá-lo e admirá-lo exatamente pelo que o distingue do inventor do "socialismo do século 21", como seu aliado e até instrumento, na desastrada aventura "zelayana".

O Plano Arias poderia atender às exigências da comunidade internacional e, ao mesmo tempo, manter intacto o princípio constitucional, cuja violação motivou a destituição de Zelaya. Mas, para isso, as duas partes teriam de ser pressionadas pelos países interessados na manutenção da estabilidade política regional. Ora, esses países assumiram atitudes radicais, retirando embaixadores e não reconhecendo o governo de facto - razão pela qual perderam a condição de exercer qualquer mediação útil.

O governo brasileiro foi mais longe. Deu abrigo a Zelaya na embaixada em Tegucigalpa, configurando-se uma situação sui generis. Pela primeira vez na história da diplomacia latino-americana, um político perseguido por governo atrabiliário pede abrigo em embaixada, não para sair do seu país, mas para a ele voltar. E o Itamaraty não pôde conceder a Zelaya o clássico asilo político, uma vez que não poderia submeter às condições desse status - entre elas a de se abster de quaisquer manifestações políticas - um presidente que considera estar no exercício de seu cargo.

O Itamaraty, tendo cometido a imprudência de conceder o abrigo, nada mais pôde fazer além de pedir a Zelaya que não fizesse declarações capazes de desencadear reações, tanto de seus partidários como do governo de facto, que resultassem em atos de violência. Não é, obviamente, o que o presidente deposto tem feito. Desde que se instalou, em precaríssimas condições, na embaixada brasileira, Zelaya e seus mais de 60 acompanhantes não têm feito outra coisa senão dar entrevistas e manter contatos, sempre por telefone celular, com os seus militantes. Os distúrbios verificados nos últimos dias em Tegucigalpa são o resultado desse ativismo.

Assim, o governo brasileiro corre o risco de ser responsabilizado por ter dado pretexto a uma eventual explosão de violência, por ter decidido hospedar Zelaya. Não bastasse isso, ao conceder o abrigo nas condições em que o fez, o Itamaraty rompeu um dos mais caros e tradicionais princípios da política externa brasileira: o da não-intervenção nos assuntos internos de terceiros países.

E, nesse momento, o que Honduras realmente necessita é de amigos que ajudem a resolver o impasse político, sem deixar sequelas que mais tarde se transformem em conflitos violentos. O presidente da Costa Rica, Oscar Arias, parece ter esgotado sua capacidade de mediação. Mas a OEA, usando como base o Plano Arias, tem agora condições para intermediar uma solução para o dissídio. Na segunda-feira, o secretário-geral José Miguel Insulza iniciará uma nova missão em Honduras. Mas, pondo as barbas de molho, Lula pediu socorro ao primeiro-ministro espanhol, José Luiz Zapatero. Ontem mesmo, o chanceler espanhol iniciou contatos com o governo de facto hondurenho num esforço de mediação.

ESTADÃO

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O futuro da energia eólica

Map locator of Brazil's Nordeste regionImage via Wikipedia
Está marcado para 25/11 o leilão de energia eólica, com 441 projetos - dos quais 332 no Nordeste -, com capacidade de geração de 13.341 MW. O leilão é considerado, por especialistas e investidores, relevante para o futuro de um setor com peso ainda ínfimo (0,5%) na capacidade outorgada total, de 107,5 mil MW.

Agências de crédito como o BNDES, o BNB e a Sudene financiam investimentos em usinas eólicas. Tramita na Câmara dos Deputados projeto que cria um fundo de estímulo à energia renovável, beneficiando as pequenas centrais hidrelétricas, usinas de biomassa e de energia eólica.

domingo, 9 de agosto de 2009

Democracia de conveniência

Um espetáculo deprimente e vergonhoso. Sinal de um tempo em que as misérias morais chovem a cântaros. Marca do ciclo de degeneração a que chegou o sistema político no Brasil. Essa é a observação que se pode fazer da primeira sessão do Senado após o recesso, quando o ex-presidente da República Fernando Collor, olhos esbugalhados, voz embargada, feições raivosas, solicitou ao senador Pedro Simon engolir as referências sobre ele. A designação litúrgica "Vossa Excelência", usada de maneira farta e enfática, parecia ter a intenção de ferir o interlocutor com um palavrão ou algo oposto ao majestoso conceito que a expressão denota. Se projetarmos o complemento da virulenta peroração no plano das metáforas - "faça delas o uso que julgar conveniente" -, vislumbra-se não apenas a dimensão semântica, mas os limites estéticos da ação sugerida pelo filho do senador Arnon de Mello.

O lamentável episódio - com sequência no meio da semana - demonstra, de forma cabal, que o debate político, chama do espírito democrático, continua a fazer parte do egocentrismo, da desconfiança e do ódio, que o timoneiro Simon Bolívar já identificara, há 200 anos, quando escreveu o libelo: "Não há boa-fé na América, nem entre os homens nem entre as nações; os tratados são papéis, as Constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida, um tormento." A desconfiança e o caráter patrimonialista impregnam nossa cultura política, limitando as lealdades individuais aos grupos de interesses e familiares. Tem sido assim ao longo da História. É isso que explica o familismo infiltrado na crise do Senado. Afinal de contas, o que está em disputa entre os contendores, oposicionistas, governistas e os que subiram no muro, como parece ser o caso dos petistas? A explicação mais frequente é de que se trata do jogo pela cadeira presidencial, a ser disputada no próximo ano. É plausível. Mas a disputa, inclusive a mais ferrenha, há de abrigar padrões para reger costumes políticos mesmo em democracias incipientes como a nossa. Evidências de transgressão chegaram ao conhecimento da sociedade. Precisam ser apuradas. A maioria parlamentar tem poder de arquivar recursos contra um de seus pares? Sim. Mas nem tudo o que é possível é moral ou ético. Eis a questão.

O que se procura implantar na via parlamentar e em outros espaços é o que se chama de "democracia de conveniência", cujo ideário se inspira no jogo de reciprocidades, nos moldes "eu aprovo e você me retribui". Aliás, esse modelo vem lá de trás. Políbio (205-125 a.C.) foi um dos precursores da tese da degenerescência da política. Referia-se ele a uma "democracia degenerada em demagogia", sistema assolado por apetites particulares, lutas partidárias, conflitos. Ao esboçar uma teoria cíclica da sucessão dos regimes políticos, a partir das visões de Platão e Aristóteles, o filósofo grego enxergou a tirania como ramo torto da monarquia, a oligarquia como desvio da aristocracia e a demagogia - que abriga o populismo latino-americano - como fruto podre da democracia. É quando a política substitui o pedestal de missão pelo balcão de profissão.

Pois é exatamente a loja que se instala na esfera política uma das causas da crise. É esse o vírus utilitarista que tem provocado a pandemia de escândalos que abate o corpo do Senado há bom tempo. Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho renunciaram ao mandato de presidente da Casa em 2001. Renan Calheiros fez o mesmo no final de 2007. A força acumulada do senador José Sarney, com sua longa história política, não foi suficiente para livrá-lo da onda pandêmica. Poderá safar-se de efeitos mais danosos - como a renúncia - por conta da vacina recebida do presidente Lula. Mas a maioria que lhe dará sustentação é pequena para deixá-lo imune às manchas que já sujam sua imagem pública. Manchas ampliadas por conta de táticas erráticas como a de deixar que tarjas de censura voltem a tapar os espaços do noticiário de O Estado de S. Paulo, um símbolo da liberdade de imprensa no País. Transferir a culpa da crise para a imprensa, como fazem alguns senadores, é a mesma coisa que dizer que as TVs são responsáveis pela gripe suína. Pior é constatar que a degeneração dos costumes políticos parece ter aliados no sagrado altar da Justiça. Que diria Bacon, o mestre londrino, sobre juízes flagrados em falta com a integridade, que é a virtude por excelência da função que exercem? Recitaria o mantra: "Juiz, tenha cuidado, seja sutil e circunspecto, prepare o caminho para uma justa sentença, como Deus costuma abrir o seu caminho elevando os vales e abaixando montanhas."

O que resta ao Senado fazer para sair da crise? Realizar um radical processo cirúrgico para eliminar tumores que se espalham como metástases. Significa acabar com o nepotismo, direto ou cruzado, evitar a politicagem do compadrio. Enxugar a estrutura funcional. Abrir canais de transparência. Substituir a expressão "tropa de choque" - de conotação opressiva e militarista - por plêiade cívica. Senadores fizeram uso impróprio de verbas da Casa? Assumam a culpa e devolvam os recursos. Por que tanta prestidigitação para burlar a verdade? Simulação e dissimulação, quando descobertas, privam o homem da maior arma para defesa de sua identidade: o crédito e a confiança. Se as interlocuções divulgadas, conforme alegam implicados, não mostram ilegalidade, por que tanta preocupação em evitar a apuração das denúncias? E, por fim, resta fazer a reforma política, com a redefinição do papel do Senado e a inclusão de aspectos como a eliminação da execrável figura do suplente de senador sem votos. É inimaginável que um senador sem um único voto seja capaz de fazer valer, no Parlamento, sua ética pessoal sobre a ética coletiva.

O Senado cumpre, sim, importante papel ao fazer a representação dos Estados. Por isso mesmo, à Câmara Alta cabe a tarefa de cultivar princípios e valores que tornem seus integrantes tão excelsos quanto o nome da Casa que os abriga.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação

ESTADÃO

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Os limites da tolerância

Em artigo anterior, a propósito do encontro entre culturas distintas sem uma guerra entre civilizações, utilizei o livro de Ian Buruma Occidentalism. Em livro recente o antigo professor de Oxford aproximou o foco para entender o que aconteceu em seu país natal, a Holanda, que de país calvinista, reservado e tolerante se tornou palco de ações violentas (ver Murder in Amsterdam: the Death of Theo Van Gogh and the Limits of Tolerance, London, Atlantic Books, 2007). Um líder populista "de direita", Pim Fortuyn, foi assassinado em 2002 por um fanático não muçulmano. E o cineasta Theo van Gogh, que criticava o desrespeito à liberdade e aos direitos humanos por parte de certas correntes islâmicas, acabou assassinado em novembro de 2004 por um ativista muçulmano ligado a grupos terroristas.

Teria terminado o momento da História em que a Holanda se distinguiu pela capacidade de absorção de culturas diversas? Não foi para lá que se mudaram os judeus espanhóis e portugueses perseguidos pela Inquisição? Não foi em Amsterdã que houve a única greve geral de monta contra a deportação dos judeus? Não foi na Holanda que Baruch Spinoza filosofou e, mais recentemente, em 1934, Huizinga disse que vivia no país da tolerância, onde mesmo os extremismos seriam "moderados"? E não é certo que 45% da população de Amsterdã em 1999 era de origem estrangeira? E o prefeito na época dos assassinatos não se chamava Cohen, bem como um importante vereador-administrador da cidade ostentava o nome de Ahmed Aboutaleb?

Por suas regras tolerantes, a Holanda acolhe perseguidos políticos. Há milhares de refugiados sírios, iranianos, marroquinos, berberes, turcos, somalis, grupos tâmeis de Sri Lanka, etc. Além das muitas centenas de milhares de "trabalhadores convidados", como são qualificados os que encontram emprego e levam a família. Entre estes, muitos são de origem surinamesa ou vindos da Indonésia, educados em língua holandesa, o que lhes facilita a integração. Sendo assim, até que ponto algo específico da cultura e da religião muçulmanas engendraria a violência atual e as reações racistas ressurgentes? Buruma procura demonstrar que as diferenças de visão entre fundamentalistas ocidentais ou islâmicos podem conviver com mútuo proveito, desde que não usem a força e respeitem as regras da Constituição laica. Não desconhece os argumentos, como os da somali Ayan Hirsi Ali e de alguns intelectuais de passado esquerdista e presente paixão conservadora, que alertam para os riscos de leniência na defesa dos valores universais da civilização ocidental. Mas pondera que a incorporação desses valores é proveitosa quando advém de reação na própria cultura islâmica, e não como uma imposição externa.

Há que reconhecer, porém, pensa Buruma, que a Holanda do passado, branca, burguesa, liberal, tolerante, hoje é uma sociedade multirracial e multicultural, que faz parte da União Europeia e sofre a influência das multinacionais, em suma, da "globalização". Isso suscita reações defensivas agarradas a diferenças religiosas e culturais. No lugar das identidades nacionais e das tradições políticas democráticas que davam coesão à sociedade, multiplicam-se identidades comunitárias, religiosas ou não, que com frequência se chocam com a cultura cívica anterior.

Em outros termos, a convivência democrática não se pode basear mais na assimilação da cultura nacional predominante e na aceitação pelos recém-vindos das regras do "país legal" tal como ele existia antes. O filme francês Entre os Muros da Escola é exemplo vivo das dificuldades de se moldarem os jovens de origem migrante, mesmo nascidos na Europa, à cultura nacional, acrescento. Entretanto, a crise que prevalece não é devida apenas à existência de "duas - ou mais - culturas", mas a que muitos não se conformam que "seu mundo" acabou.

"O povo começa a se sentir não representado. Ele não sabe mais quem são os responsáveis. Isso ocorre quando os "oligarcas" (a noção usada por Buruma é Regenten, referindo-se aos comerciantes burgueses, bem retratados por Frans Hals no século 17 com ar de modéstia e superioridade, que depois da 2ª Grande Guerra foram substituídos como expressão da classe politicamente dominante pelos social-democratas e pelos democratas cristãos) modernos, como o social-democrata Ad Melkert, começam a perder amarras no sentimento popular. Mais do que irrelevantes, eles começam a ser alvos de hostilidade ativa. A política de consenso contém suas próprias formas de corrupção: a política fica emperrada na rotina de uma elite autoperpetuada, trocando empregos entre os membros do clube, para lá e para cá" (Buruma, Ian, op. cit., páginas 50 e 51).

No mundo emergente os desajustados são numerosos, não se restringem aos newcomers. Há também os que, sendo originários de "famílias de raiz", não se conformam com a nova sociedade. De certo modo quase todos estão "desenraizados", daí os populismos, de direita ou de esquerda (aliás, mutantes), o terrorismo, o apego aos vários fundamentalismos, à violência.

O que tudo isso pode ter que ver com o Brasil? Pouco e, talvez, muito. Temos a sorte de viver sob uma cultura que também aprecia a tolerância (a despeito de recentes tentativas de fazer nascer um "racismo antirracista", como diria Sartre). Sem as diferenças religiosas e linguísticas com que os europeus se defrontam, somos também um país de migrações, embora hoje predominantemente internas. Portanto, de "desenraizados". E desenraizados não são apenas os recém-incluídos, geográfica e/ou socialmente, à sociedade moderna. São também os oligarcas que não se conformam que ela clame por novas práticas e não querem perceber as mudanças. O mais triste ocorre, como agora, quando os que chegaram ao poder para renovar e adaptá-lo aos novos tempos aderem aos hábitos do "clube oligárquico" e se autoatribuem a "missão histórica" de perdoar os transgressores e dar continuidade às velhas práticas.

É nesse ponto que cabe o paralelo com a situação descrita por Buruma. Não só a advertência sobre os riscos de violência, mas de riscos de novos populismos, de esquerda ou de direita, que possam preencher com uma retórica cativante a falta de sintonia entre as instituições (desmoralizadas) e o sentimento das massas.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República

ESTADÃO

sábado, 30 de maio de 2009

Centenário da descoberta da doença de Chagas

Neste ano de 2009 comemoramos os cem anos da descoberta da doença de Chagas. Trata-se de fato extremamente importante do ponto de vista médico e científico, mas que, infelizmente, não recebeu nem recebe a importância devida e merecida.

Carlos Ribeiro Justiniano Chagas, ou simplesmente Carlos Chagas, ilustre brasileiro, nasceu em 1879. Formou-se pela então Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1903, dedicando-se posteriormente ao estudo de doenças infecciosas e parasitárias. Oswaldo Cruz, outro ícone da medicina de nosso país e seu mentor no Instituto de Manguinhos, enviou seu discípulo a um ramal da Estrada de Ferro Central do Brasil, na cidade de Lassance, no norte de Minas Gerais, região do Rio das Velhas, para investigar um surto de malária que lá estava ocorrendo. Instalou consultório, laboratório e dormitório num vagão ferroviário do ramal que estava sendo construído, de forma precária e com poucos recursos técnicos à disposição. Ao examinar uma menina de 2 anos de idade chamada Berenice, entre tantos outros pacientes, notou, com a acurácia dos grandes propedeutas, quadro clínico diverso da enfermidade que motivara sua viagem. Colheu amostra de sangue da criança e detectou o parasito causador desse mal, dando-lhe o nome de Trypanosoma cruzi, em homenagem a seu mestre, e de cepa Berenice à amostra colhida dessa menina. A paciente foi reencontrada em 1961, sendo examinada e estudada e, como fato científico importante, ainda era portadora da mesma cepa do parasito. Faleceu em 1981, mas não dessa doença. Carlos Chagas fez o relato de sua descoberta na literatura médica em 1909 e a moléstia recebeu seu nome por indicação de seus pares, em sinal de total reconhecimento. Na ocasião, foi enaltecido por Oswaldo Cruz como a maior das glórias de Manguinhos. Continuou seus estudos em seres humanos e animais silvestres e de laboratório, divulgando suas observações em inúmeras revistas científicas. Foi indicado ao Prêmio Nobel, que injustamente não lhe foi atribuído, por motivos que permanecem obscuros até hoje.

Acredita-se que essa doença exista no continente americano desde os tempos em que o ser humano passou a habitá-lo. Múmias bem conservadas de 9 mil anos de idade, descobertas no Deserto de Atacama, tinham fragmentos do parasito em seus tecidos. Charles Darwin, em seus relatos, comenta ter sido picado por um inseto hematófago que, pela impressionante clareza de sua descrição, deve ter sido o agente transmissor da doença de Chagas. Morreu na Inglaterra de insuficiência cardíaca, provavelmente causada por esse mal.

Qual é a situação dessa doença nos dias atuais? Por incrível que possa parecer, não temos medicamentos seguros e eficientes para tratar a infecção humana. Em contraste, temos drogas e equipamentos altamente sofisticados e caros para tratar as consequências mais graves da doença, como a insuficiência cardíaca. Sabemos transplantar corações de pacientes infectados, mas não sabemos tratar a causa desse mal.

Programas de erradicação do inseto transmissor foram aplicados em algumas áreas endêmicas, com sucesso. Mesmo assim, a maioria das regiões acometidas não recebe das autoridades responsáveis o tratamento devido. Doenças menos prevalentes, mas importantes por visões políticas e de mídia, recebem atenção bem maior do que essa. Carlos Chagas, em 1911, dizia que medidas sanitárias simples, modificando as condições de habitações, dariam grandes resultados. Em sua visão humanista e de cientista idealista, também dizia que certamente não nos faltariam energia e vontade política para resolver o problema. Infelizmente, como acontece com a maioria daqueles que produzem para a evolução do bem-estar social, as suas previsões não se concretizaram.

Em 1944, Portinari retratou em sua tela Lavadeiras uma criança apresentando os sinais típicos da doença. Hoje, na América Latina, 25% da população, ou seja, 90 milhões de pessoas, estão expostas ao contágio. Acreditamos que haja 16 milhões de pessoas infectadas, com 6 mil mortes por ano, 91% das quais com comprometimento cardíaco. Isso tudo após Carlos Chagas ter dado o alerta em 1911. Por acometer preferencialmente populações de regiões pobres, socialmente excluídas, estas recebem menos atenção dos órgãos responsáveis, representando um mercado de pouca expressão e levando ao desinteresse político por essa doença. Nas últimas décadas, resultado de um grande esforço da comunidade científica latino-americana, houve redução da transmissão em extensas áreas trabalhadas, demonstrando objetivamente a possibilidade de erradicação da doença. Deve-se salientar que essas iniciativas não foram fruto de políticas de Estado, pois as vontades sociais, políticas e mercadológicas para a implementação do controle da doença são mínimas. Para agravar a situação, com a febre da globalização, estamos "exportando" a doença para a América do Norte, a Europa, o Japão e a Austrália, com a emigração de membros de nossa população. Essas regiões não faziam testes de rotina em seus hospitais e bancos de sangue para detecção da doença, vivendo hoje todas as consequências desse fato. Carlos Chagas dizia, do alto de sua sabedoria, que não há doenças exclusivas dos trópicos. Mais uma lição desse mestre que deveríamos já ter aprendido.

O que faz esse eminente cientista brasileiro ter um lugar por poucos ocupado é o fato de, além de ter descrito a doença que leva o seu nome, com todas as implicações clínicas, ter identificado o agente transmissor e também o organismo causador desse mal. Essa tríplice descoberta faz do autor uma presença quase única na história das ciências médicas no Brasil e no mundo. Carlos Chagas deve, portanto, ser reverenciado como um dos maiores cientistas que nosso país produziu em toda a sua História.

Charles Mady, professor associado da Faculdade de Medicina
da USP, é diretor da Unidade de Miocardiopatias do InCor.
E-mail: charles.mady@incor.usp.br

ESTADÃO

domingo, 3 de maio de 2009

Mais e menos inteiros

Diogo Mainardi,
Veja

MabThera. É a marca do remédio usado no tratamento de linfomas iguais ao da ministra Dilma Rousseff – os linfomas de células B. Associado à quimioterapia, ele aumenta a possibilidade de cura dos pacientes em cerca de 20%. Dilma Rousseff fez bem em procurar um hospital particular. Seus hematologistas e seus oncologistas podem receitar-lhe o MabThera, como acontece nos Estados Unidos e na Europa. Os mais de 10 000 pacientes com linfomas que todos os anos recorrem aos hospitais públicos brasileiros, por outro lado, não podem contar com o remédio. Porque ele é caro demais para o SUS: um frasco custa 8.000 reais. O que aumenta mesmo, nesses casos, é só a possibilidade de morrer.

No sábado 25, ao lado de seus médicos, Dilma Rousseff falou abertamente sobre seu estado de saúde. Depois de informar que retirara um linfoma e que passaria por um tratamento de quimioterapia, ela declarou o seguinte, com aquela sua gramática um tanto peculiar: "Nós, brasileiros, temos o hábito de sermos capazes de enfrentar obstáculos e sairmos inteiros do lado de lá". Alguns brasileiros enfrentam obstáculos menores do que os outros. E alguns brasileiros possuem mais chance de sair inteiros do lado de lá. Os médicos de Dilma Rousseff sabem disso: um brasileiro com linfoma que toma MabThera tem mais chance de sair inteiro do lado de lá do que um brasileiro com linfoma que é atendido pelo SUS e não toma MabThera. Há brasileiros mais inteiros e brasileiros menos inteiros.

Em seu primeiro comentário público sobre o assunto, Lula garantiu que Dilma Rousseff "não tem mais nada". De certa maneira, ele está certo. Os dados do Ministério da Saúde sobre a incidência de câncer no país nem relacionam o linfoma. Para o governo, trata-se de uma categoria indiscriminada. É como se, oficialmente, o linfoma nem existisse. Para fazer qualquer planejamento, as autoridades sanitárias brasileiras se baseiam nos dados dos Estados Unidos. Há muitos anos, os médicos da rede pública tentam inutilmente incluir o rituximabe – o nome genérico do MabThera – no tratamento dos linfomas. Mas o medicamento só costuma ser obtido na marra, por meios legais, quando um doente processa o Ministério da Saúde. O maior obstáculo que os brasileiros enfrentam, para citar Dilma Rousseff, é o governo.

Lula e o PT imediatamente levaram o linfoma de Dilma Rousseff ao palanque, usando o apelo emocional para tentar impulsionar sua candidatura a presidente. Em vez disso, teria sido mais decoroso levar o linfoma aos hospitais públicos, estendendo aos pacientes mais pobres o acesso ao MabThera. Quem sabe alguns deles conseguissem sair inteiros do lado de lá.

sábado, 25 de abril de 2009

Vamos cair fora (Diogo Mainardi, Veja)

Depois de Iron Maiden, Simply Red e A-Ha, chegou a hora de Mahmoud Ahmadinejad atormentar o Brasil. Este é um ano particularmente penoso para todos nós.

Mahmoud Ahmadinejad desembarca no comecinho de maio. Ele foi convidado por Lula. Uma semana atrás, num congresso da ONU, o presidente iraniano acusou Israel de racismo. Dois dias mais tarde, voltou ao assunto, acusando Israel de praticar limpeza étnica e o assassinato em massa dos palestinos. Ele já anunciou qual é a sua proposta: eliminar Israel da face da Terra.

No congresso da ONU, em protesto contra o discurso de Mahmoud Ahmadinejad, os representantes europeus abandonaram a sala. Quem continuou lá? Os representantes brasileiros, enviados por Lula. No total, mais de trinta apaniguados do PT e ongueiros, do ministro Edson Santos ao pai de santo mangueirense Ivanir dos Santos. Quando Mahmoud Ahmadinejad chegar ao Brasil, podemos imitar os representantes europeus e abandonar o país por alguns dias. Ele deseja ir à Fiesp? A Fiesp estará fechada. Ele pretende conhecer a Praia de Copacabana? Copacabana estará deserta. Para recepcioná-lo, ele encontrará somente os apaniguados do PT e os ongueiros.

Se é para abandonar o país por alguns dias, nenhum lugar é melhor do que a Argentina. Em 1994, terroristas dinamitaram o prédio de um centro israelita em Buenos Aires. Foram assassinadas 85 pessoas. O relatório do Ministério Público argentino acusou as autoridades diplomáticas iranianas de montar uma rede de espionagem no país, que coordenou o atentado praticado por terroristas do Hezbollah. Os organizadores do atentado se refugiaram em território iraniano. A Interpol emitiu uma ordem de captura contra oito deles, mas Mahmoud Ahmadinejad e seu bando se recusaram a entregá-los. Atualmente, dois desses foragidos trabalham como assessores do guia supremo, o aiatolá Ali Khamenei. A Argentina rejeita qualquer contato direto com o presidente iraniano, que protege os terroristas. É para lá que temos de ir.

Na última semana, o Itamaraty prometeu condenar publicamente as ideias negacionistas de Mahmoud Ahmadinejad durante sua passagem pelo Brasil. Lula poderia ganhar coragem e condenar também o programa nuclear iraniano. Mas ocorre o contrário: ele apoia o programa nuclear iraniano. O mesmo programa nuclear que, associado às ideias negacionistas de Mahmoud Ahmadinejad, torna especialmente alarmante sua promessa de eliminar Israel da face da Terra. Assim sendo, Lula poderia ao menos condenar algumas das práticas mais repelentes do estado iraniano: o apedrejamento de mulheres, os abusos contra as minorias religiosas, o assassinato de homossexuais, o encarceramento de políticos, a censura à imprensa. O que Lula fará quando se encontrar com Mahmoud Ahmadinejad? Simples: ele ficará sentado, calado, como um pai de santo mangueirense num congresso da ONU.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Herói barbudo

Nunca é demais relembrar a história. Tiradentes acabou enforcado por liderar uma conspiração contra a Coroa. Decaía, naquela época, o latifúndio açucareiro do Nordeste. O Brasil morava nas Minas Gerais.

Durante os dois primeiros séculos, a Coroa portuguesa havia construído na colônia brasileira um sistema econômico peculiar, mistura de escravidão com capitalismo comercial. Baseado na produção do açúcar, uma mercadoria extremamente valiosa no mercado europeu, a grande propriedade abrigava o engenho fabril. Junto, o coronel do açúcar.

Tal economia ocupou a Zona da Mata nordestina, principalmente o litoral de Pernambuco, Bahia e Alagoas. Seja nas entranhas dos canaviais, seja no agreste, mais seco e recuado, originava-se a pequena propriedade rural, produzindo comida barata, carnes, cereais e mandioca, para o trabalho no latifúndio. Começava também a devassa da Amazônia.

Mas as transformações do modo de produção europeu, que iniciava a superação do feudalismo, provocaram mudanças no mercantilismo. Portugal, até então impoluto, sofria a concorrência da Holanda e da Inglaterra. Outras colônias lançaram seu açúcar no mundo. Desde 1640 a economia açucareira perdia seu brilho e no final daquele século entraria em crise.

A mineração, por sorte, vingou exatamente nesse momento. Os primeiros achados de ouro na Serra do Espinhaço, região onde hoje se localiza Ouro Preto, ocorreram em 1696. Imediatamente os aluviões amarelados atraíram a população, aturdida com a decadência da economia nordestina. Com a mineração, escreve Nelson Werneck Sodré, a colônia adquiria uma segunda dimensão.

Durante três quartos de século, o ciclo das Minas Gerais iria polarizar as atenções da colônia brasileira. Sua rápida supremacia afundou as demais atividades econômicas. Um imenso território, até então desabitado, povoou-se com um quinto da população da época. Mudava o eixo da colônia, trocava o centro político. Em 1763 a capital se deslocou de Salvador para o Rio de Janeiro.

Caio Prado Júnior, outro grande historiador, aponta uma diferença fundamental dessa nova fase: ao contrário da agricultura, no período anterior, a mineração foi submetida, desde o seu início, a uma rigorosa disciplina pela Coroa. Logo em 1702 se impôs o Regimento dos Superintendentes, Guardas-Mores e Oficiais Deputados para as Minas de Ouro, regulamento básico que iria perdurar até o fim da época colonial.

Aqui nasce a história de Tiradentes. O sistema estabelecido pela Coroa exigia um tributo - o quinto, sobre todo o ouro extraído - arrecadado pela Intendência de Minas. Mas, encontrado facilmente nas areias sedimentares, e não incrustado nas pedras, como noutros mundos, o ouro era ladinamente desviado do fisco. Como se procedeu para enfrentar o problema?

Simples. Estabeleceu-se, nas capitanias minerárias, uma cota anual mínima para o quinto, estabelecido em cem arrobas de ouro. Se, porventura, o quinto arrecadado não atingisse esse valor, a Fazenda Real mandava realizar um derrame, quer dizer, a população envolvida era obrigada a completar a soma. Obviamente, ninguém gostava disso.

Na ascensão do ciclo do ouro, incluindo seu apogeu, por volta de 1750, o pagamento do quinto e, quando imposto, do derrame foram bem suportados. Afinal, havia riqueza para todos, exceto, claro, para os escravos das minas. Quanto, todavia, o sistema de exploração dava mostras de decadência, os derrames provocaram movimentos contestatórios dos comerciantes e da população em geral. Foi o que aconteceu em 1789.

Sabedores de que se programava um novo derrame, necessário para saldar uma dívida de 538 arrobas de ouro, os conspiradores, liderados por Tiradentes, organizaram um levante contra o momento da cobrança. Não executaram, porém, o seu plano. Delatados por Joaquim Silvério dos Reis, foram presos os inconfidentes. Após três anos de prisão, julgado culpado de traição contra o rei, Tiradentes acabou enforcado.

Passado o trauma da revolta, e selado definitivamente o fim do ciclo do ouro, como num movimento circular voltava a agricultura brasileira a se rejuvenescer, após o período sombreada pela mineração. Desse momento em diante, porém, o açúcar estaria acompanhado por duas outras mercadorias, a estimular a exploração do solo: o algodão e, logo depois, o café.

Em 1787 surgia na Inglaterra o tear mecânico. Ofertando matéria-prima para os novidadeiros tecidos, desde o Maranhão até o Paraná a cultura algodoeira se expandiu fortemente. Enquanto o açúcar se recuperava no Nordeste, a branca fibra gerava empregos e renda nas novas regiões. Mas seria o café quem iria alterar a cara do País.

A partir das encostas do Rio de Janeiro, onde se instalou no início de seu ciclo, o cafezal caminhou para o oeste seguindo as montanhas onduladas do Vale do Paraíba. Adentrou as terras roxas de Campinas e, já passados meados do novo século, estabeleceu-se nas planícies de Ribeirão Preto. O ouro verde construía, em São Paulo, a nova História do Brasil.

Nesse momento, após um século, Tiradentes virou herói nacional. Acontece que o Império o manteve um personagem obscuro, pois, afinal, fora dona Maria I, avó de Pedro I, quem emitira sua sentença de morte. Os ideólogos da Independência, ao contrário, mitificaram-no, para identificá-lo com o ideal republicano. Mais tarde colocaram barba na imagem de Tiradentes para sugerir ao povo, à beira do cadafalso, de camisolão, a imagem de Cristo. Puxa, do que não é capaz a política!

Derrama não se prevê, hoje em dia, para enfrentar esta crise. Pudera! Na economia atual o "quinto" ultrapassa o "terço", os impostos chegando às alturas. Também passou a época dos enforcamentos. Mas cuidado. Sempre tem gente querendo fabricar novos heróis. Barbudos.

Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E-mail: xico@xicograziano.com.br Site: www.xicograziano.com.br

ESTADÃO

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O Brasil do atraso

Há dias o Banco Mundial divulgou relatório criticando o governo Lula por ter desperdiçado os últimos anos de prosperidade econômica ao não realizar as reformas microeconômicas voltadas para reduzir a burocracia, favorecer o ambiente de negócios, fomentar a infraestrutura e fortalecer o crescimento sustentado.

Para o Banco Mundial, além de tornar a administração pública mais ágil e eficiente, as microrreformas sedimentam o caminho para o crescimento sustentado. Se executadas, o Brasil estaria hoje mais bem defendido contra a crise, com menor perda de produção e de emprego. De fato, abandonadas pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, elas hoje fazem falta na travessia da crise. Afinal, por que o Brasil não consegue avançar na superação de velhos e conhecidos problemas da gestão pública, que só conduzem ao atraso e emperram o desenvolvimento? O que foi feito ou deixaram de fazer nos últimos anos?

Não é novidade que a pesada estrutura do nosso país empaca o progresso e freia o crescimento. São leis anacrônicas e ultrapassadas, tramitação infernal de papéis, burocratas cobrando "pedágios", desperdício de dinheiro com exigências absurdas (os cartórios só existem no Brasil e sobrevivem à era digital!), excesso e desordem tributária convidando à sonegação. É um aparelho público mastodôntico convivendo com o moderno dinamismo da economia privada, impondo aos cidadãos regras e exigências dos anos 1950/60 em um país com pressa de viver o século 21. Criado em 1979, o Ministério da Desburocratização não cumpriu sua missão e acabou extinto em 1986. Nas gestões Sarney e Collor o tempo passou e nada mudou.

O governo FHC executou um programa voltado a abrir a economia, superar o atraso institucional e adaptar o País a uma nova ordem jurídica, pela qual o Estado encolhia e as instituições cresciam atuando com autonomia e sem influência política dos governos - origem de muitas das mazelas do atraso e da corrupção na gestão pública. Foram criadas as agências reguladoras, encolheram as empresas estatais, mas a máquina do Estado continuou inchada. Além disso, FHC tentou levar adiante as grandes reformas (tributária, previdenciária, trabalhista), mas não conseguiu aprovar quase nada no Congresso. Já a estrutura burocrática - com raras exceções, como tornar mais ágil a cobrança de impostos pelas prefeituras - restou praticamente intacta e o Brasil mastodonte seguiu em frente.

Quando assumiu o governo, em 2003, o presidente Lula chegou com todo o gás, disposto a completar as grandes reformas e implementar um programa de microrreformas, cujo alvo era o ataque a esse Brasil mastodonte, atrasado, gigante, burocratizado, que impede o progresso e paralisa o desenvolvimento. Coube ao então secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Marcos Lisboa, comandar a elaboração do programa. Intitulado Reformas microeconômicas e crescimento de longo prazo, foi concluído em dezembro de 2004, com propostas para as áreas de crédito, melhoria da qualidade da tributação, medidas econômicas para inclusão social (o microcrédito e o crédito consignado), redução do custo de resoluções de conflitos (a nova Lei de Falências foi uma das raras propostas a vingar) e ambiente de negócios (simplificação burocrática para atrair investimentos privados). Mas até onde foi o gás de Lula? Fez uma "chaminha" pequenininha e apagou rápido. Quer ver?

Em relação às grandes reformas, fora a incompleta reforma da Previdência, Lula abandonou todas. Até mesmo a trabalhista, onde ele próprio e os companheiros que levou para o governo tinham inegável expertise. O que restou da tributária perambula pelo Congresso, mas na agenda de prioridades perde feio para as brigas partidárias e os escândalos do Senado.

O balanço das microrreformas é deprimente. Fora a abertura do mercado de resseguros, de algumas poucas leis (entre elas a de falências) e créditos para baixa renda, 90% ou mais foram abandonados quando Guido Mantega assumiu a Fazenda. Até as Parcerias Público-Privadas (PPP), que o ex-ministro Antonio Palocci centrou fogo para concluir a regulamentação, não foram adiante por absoluta incompetência para formatar projetos e atrair parceiros privados.

É assim que a gestão Lula tem tudo para entrar para a história com a marca da falta de espírito público e de coragem para enfrentar as velhas resistências políticas do atraso que se opõem ao progresso do País para impor seus privilégios. Afinal, de que lado está o presidente?

*Suely Caldas, jornalista, é professora de Comunicação da PUC-Rio (sucaldas@terra.com.br)

ESTADÃO

terça-feira, 7 de abril de 2009

Coelho estrangeiro

Coelho, definitivamente, não é animal ovíparo. Mesmo assim, a Páscoa apela ao macio bichinho para atrair seu comércio de ovos de chocolate. O simpático engodo mistura história, gula e fé. Semana Santa.

A origem da Páscoa remonta aos hebreus, quando significava um ritual de passagem. Na cultura judaica, nela se comemoravam a libertação e a fuga do povo oprimido. Entre os cristãos, desde sempre, a data celebra a ressurreição de Jesus Cristo. Tudo bem.

O que o coelho tem que ver com isso? Por ser muito prolífero, o orelhudo animal há muito representa a fertilidade. Na Antiguidade, época de elevada mortalidade humana, o nascimento e a esperança da vida nova se reverenciavam. E o ovo, entra onde?

Contam-se várias histórias. No início eram decorativos, não para ser comidos. Coloridos, valiam presentes para comemorar a estação do ano, a vida brotando da casca após o gelado inverno. Ostera, a deusa da primavera, aparecia na Europa medieval como uma mulher segurando um ovo na mão, observando um coelho saltitante ao seus pés. Fertilidade e renascimento.

Um dia, no século 18, os franceses inventaram fabricar ovos de chocolate. A iguaria precisou, séculos antes, da descoberta do cacau na recém descoberta América. Foi Cristóvão Colombo quem levou, em 1502, as primeiras sementes de cacau para a Europa, entregando-as ao rei Fernando II. Um sucesso.

Utilizado nas civilizações maia e asteca, o "tchocolath" era bebida sagrada e medicinal, servindo aos rituais religiosos. Até as sementes de cacau tinham valor para os maias, servindo como moeda. Um zontli era formado por 400 sementes, enquanto o portador de oito mil sementes tinha na verdade um xiquipilli. Cada coisa!

De origem amazônica, o cacaueiro cresce à sombra, em meio à densa vegetação, formando uma árvore de médio porte. Os frutos, grandes e escuros, penduram-se de seus galhos. Cada fruto contém em média 50 sementes, cobertas por uma polpa branca. Secas, moídas e torradas, as amêndoas fornecem o delicioso chocolate.

A domesticação do cacaueiro ocorreu apenas em 1746. Até então, seus frutos se coletavam nas árvores nativas da selva ou em plantios incipientes verificados nas várzeas. No Brasil, a Bahia se tornou o principal polo produtor de cacau já na época da Independência (1822). Nascido na floresta amazônica, o cacaueiro adotou a mata atlântica como lar.

Na capitania de Ilhéus o cultivo do cacau embasou, durante mais de um século, um ciclo econômico de vulto, cujo apogeu ocorre no início dos anos 1900. O poder dos coronéis, a sociedade - primeiro escravocrata, depois liberta -, a boemia e o suor da jornada, o contraste da opulência com a miséria, os sonhos e as desilusões dessa rica e desigual sociedade emprestaram o cenário dos magníficos romances de Jorge Amado, especialmente Cacau (1933), São Jorge dos Ilhéus (1944) e Gabriela, Cravo e Canela (1958).

Os importadores de cacau, porém, reagiram contra o domínio brasileiro. Do solo baiano, a cacauicultura encontrou boa moradia nos trópicos da África e da Ásia. Líder inconteste durante décadas, o Brasil ocupa hoje apenas a quinta posição no ranking cacaueiro. O maior produtor mundial é a Costa do Marfim, seguido por Gana e Indonésia. Quem diria.

A concorrência externa complica a economia da região cacaueira em meados do século passado. O aumento da oferta mundial faz cair os preços, ameaçando a rentabilidade da lavoura. Em 1957 o governo brasileiro cria a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), órgão encarregado da pesquisa e do apoio à produção nacional. A ordem era modernizar o sistema de produção.

O sucesso da intervenção estatal, porém, se mostrou relativo. Nunca é fácil alterar usos e costumes, muito menos na agricultura. A oligarquia cacaueira ainda vivia iludida pela glória do passado. A cultura produtiva tradicional repele as mudanças e freia o progresso. O poder político sobrevive alimentado pelos subsídios públicos.

Assim, amparado pelo Estado, a economia local, mesmo debilitada, vai-se mantendo até chegar a globalização e se abrirem as fronteiras da economia mundial. O País começa, pasmem, a importar chocolate. No começo, exporta matéria-prima e compra chocolate pronto. Depois passa a trazer de fora, inclusive, pasta bruta de chocolate.

Foi em 1989 que aconteceu o pior. A doença conhecida como "vassoura de bruxa" entra criminosamente no Brasil. O terrível fungo ataca as plantações, expande-se nos galhos e seca os ponteiros das árvores. Dizima as lavouras. Os prejuízos foram terríveis.

A produção de amêndoas decresce de 460 mil toneladas, em 1986, para 170 mil toneladas, em 2003. Estima-se que 200 mil empregos tenham sido perdidos, com perdas de US$ 1,4 bilhão. Aumenta o empobrecimento regional. A doença vegetal causa uma tragédia econômica.

Há uma década os agrônomos da Embrapa, junto com a Ceplac, desenvolvem novas técnicas de plantio, baseadas em clones vegetais resistentes à vassoura de bruxa. As novas mudas são enxertadas na copa das plantações adultas, que se revigoram. Mas o declínio da produção está patente.

Resultado: um terço do chocolate consumido no País agora vem do estrangeiro. Pois é. Boa parte dos ovos de Páscoa dessa Semana Santa traz, infelizmente, a marca enrustida do fracasso. Uma ironia da história.

Resta uma boa notícia. Plantado à meia sombra, por debaixo da floresta, o abandono das lavouras de cacau se compensa na regeneração da mata atlântica baiana. Ilhéus e principalmente Itacaré tornam-se polos importantes de recuperação ambiental, favorecendo o ecoturismo.

Os coelhos, que adoram um mato, aprovam. Jorge Amado certamente se impressionaria.

Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E-mail: xico@xicograziano.com.br Site: www.xicograziano.com.br

ESTADÃO

sábado, 4 de abril de 2009

A Operação Royalties (Diogo Mainardi, Veja)

Victor Martins está sendo investigado pela Polícia Federal. Num relatório interno, sigiloso, ele é tratado como suspeito de comandar um esquema de desvio de 1,3 bilhão de reais da Petrobras.

Quem é Victor Martins? Já tratei dele alguns anos atrás. Talvez alguém ainda se lembre. Ele é diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP). É também irmão do ministro da Propaganda de Lula, Franklin Martins.

Vamos lá. Ponto por ponto. Em meados de 2007, a PF prendeu treze pessoas na Operação Águas Profundas. Elas eram acusadas de fraudar e superfaturar contratos com a Petrobras. Durante as investigações, os agentes da polícia fazendária do Rio de Janeiro descobriram outro esquema fraudulento, envolvendo empresas de consultoria, prefeituras e a ANP. Segundo a denúncia, tratava-se de um esquema de desvio de dinheiro de royalties do petróleo. A PF abriu uma nova investigação, batizada de Operação Royalties.

Nos primeiros meses de 2008, o delegado responsável pela Operação Royalties preparou um relatório sobre o resultado de suas investigações. O que tenho na minha frente, no computador, é justamente isto: a cópia integral desse relatório.

De acordo com os dados recolhidos pelos agentes da PF, Victor Martins, apesar de ser diretor da ANP, continuaria a se ocupar dos interesses da Análise Consultoria e Desenvolvimento, empresa da qual ele seria sócio com sua mulher, Josenia Bourguignon Seabra. Victor Martins se valeria de seu cargo para direcionar os pareceres da ANP sobre a concessão de royalties do petróleo, favorecendo as prefeituras que aceitassem contratar os préstimos de sua empresa de consultoria. Num episódio descrito pela PF – e reproduzo o trecho mais escandaloso do relatório –, Victor Martins "estaria ajeitando uma cobrança de royalties da Petrobras, no valor de R$ 1 300 000 000,00 (um bilhão e trezentos milhões de reais), através da Análise Consultoria, e teria uma comissão de R$ 260 000 000,00 (duzentos e sessenta milhões de reais), a título de honorários".

O relatório da PF, com todos os detalhes sobre o esquema e o nome dos supostos cúmplices de Victor Martins na ANP, foi apresentado a Luiz Fernando Corrêa, diretor-geral da PF. O que aconteceu depois disso? Primeiro: a Operação Royalties, que estava a um passo de ser deflagrada, com as primeiras prisões, foi posta de molho. Segundo: o delegado que dirigia as investigações foi transferido. Terceiro: o chefe da polícia fazendária do Rio de Janeiro foi trocado. Quarto: o superintendente da PF carioca, Valdinho Jacinto Caetano, foi promovido ao cargo de corregedor-geral, em Brasília.

É bom lembrar: Victor Martins só está sendo investigado pela PF. Ninguém o acusou judicialmente. Ninguém o condenou. Mas os parlamentares do PSDB e do DEM passaram a semana fazendo de conta que instituiriam uma CPI da Petrobras. O motivo: segundo eles, a PF abafaria as denúncias contra petistas e membros do governo, como na Operação Castelo de Areia. Se é assim, a Operação Royalties parece confirmar essa tese. CPI da Petrobras. Já.

terça-feira, 31 de março de 2009

Com Lula, Presidência emprega 67 diretores e centenas de chefes

Ao todo, são 1.750 servidores, volume tão grande que foi preciso ampliar restaurante e estacionamento

Tânia Monteiro e Leonencio Nossa

À semelhança do Congresso, o Palácio do Planalto é uma Casa com organograma inchado. Os salários podem não chegar às cifras do Legislativo, mas a Presidência criou no governo Luiz Inácio Lula da Silva uma série de funções para encaixar a militância. Na teia administrativa, há 67 diretores e uma centena de chefes. Só a Casa Civil, pasta comandada pela ministra Dilma Rousseff, conta com sete diretores, mesmo número da multinacional Vale do Rio Doce.

O setor que mais ganhou diretores foi o da Comunicação Social, do ministro Franklin Martins. Desde 2003, passou de 2 para 12 diretores, o dobro da Petrobrás. Há diretores de Patrocínios, Normas, Controle, Internet e Eventos, Comunicação da Área de Desenvolvimento, Mídia, Imprensa Internacional, Imprensa Nacional, Imprensa Regional, Produção e Divulgação de Imagens, Apoio Operacional e Administrativo e Comunicação da Área Social.

Foram criadas, ainda, mais oito Diretorias de Programa para as pastas de Relações Institucionais e Assuntos Estratégicos. Um diretor geralmente ocupa cargo comissionado com salário de R$ 8.988, o DAS-5, mas há variações, caso seja servidor ou não (ver quadro ao lado).

Ao todo, entre cargos de chefia ou postos subalternos, cerca de 1.750 pessoas trabalham na estrutura da Presidência. Os "chefes" estão em todos os departamentos, secretarias e escalões de poder.

O gabinete de Lula tem 13 deles, com salários de R$ 6.843,76 a R$ 11.179,36. Trabalham ali também chefes adjuntos de Agenda, Informações em Apoio à Decisão, Gestão e Atendimento, sem contar os tradicionais chefes de Cerimonial e Ajudância de Ordens. O mais poderoso de todos, porém, é Gilberto Carvalho, chefe do gabinete.

Já o organograma da Vice-Presidência, mais enxuto, lembra o de uma empresa. O vice José Alencar trabalha com sete chefes, que comandam as assessorias de Comunicação, Administração, Parlamentar, Técnica, Diplomática, Militar, além do Gabinete. Não há correligionários mineiros ou amigos.

GASTOS

O gasto anual com funcionários em toda a estrutura da Presidência deve passar de R$ 2,9 bilhões, em 2008, para R$ 3,4 bilhões, neste ano. Está incluído o gasto com pessoal das secretarias especiais de Direitos Humanos, Mulheres, Promoção Racial, Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Advocacia-Geral da União (AGU) e Empresa Brasileira de Comunicação.

Os gastos com pessoal do gabinete de Lula, incluindo a Casa Civil, também devem aumentar. No ano passado, o valor gasto com os assessores mais diretos chegou a R$ 141 milhões. A previsão é gastar R$ 149 milhões neste ano. Desde janeiro, o pessoal do gabinete gerou uma despesa de R$ 25 milhões.

É tanta gente na Presidência que o próprio Lula chegou a se queixar que o Planalto ficou apertado demais. Foi preciso dobrar as instalações do restaurante e ampliar o número de vagas no estacionamento.

Procurados desde o dia 20 para esclarecimentos, os assessores da Casa Civil se limitaram a confirmar o total de diretores. Os assessores não informaram o que fazem nem quanto ganham. Apenas repassaram leis e decretos que regulamentam as funções e gratificações. Desde 2003, essas normas sofreram alterações para garantir a acomodação dos aliados.

Uma leitura parcial mostra que há mais de 50 chefes na Presidência. Técnicos estimam que o número passe de cem. Há ainda os subchefes, os subsecretários, os subcoordenadores e os secretários adjuntos.

ESTADÃO

terça-feira, 24 de março de 2009

Atas do Conselho de Segurança Nacional mostram hesitação de Costa e Silva antes da decretação do AI-5

Por
Bernardo Mello Franco e Evandro Éboli

BRASÍLIA - A cinco meses de editar o Ato Institucional número 5 (AI-5), que mergulho o país numa longa temporada de censura e perseguição política, a cúpula da ditadura militar assistia com preocupação às manifestações estudantis de 1968 e discutia internamente os riscos de uma guerra civil. Abertas nesta segunda pelo governo, as atas das reuniões do Conselho de Segurança Nacional mostram que a linha-dura do regime acusava estudantes, intelectuais, jornalistas e bispos católicos de seguirem ordens de Cuba para derrubar os generais e implantar o comunismo no Brasil. Pressionado para endurecer o regime e tomar medidas enérgicas contra os esquerdistas, o presidente Costa e Silva ainda adotava um discurso legalista e dizia defender "o livrinho", referindo-se à Constituição.

Leia a matéria completa no O Globo

sexta-feira, 20 de março de 2009

Sarney criou 70% das 181 diretorias

Agora favorável ao corte, presidente do Senado comandava a Casa quando a maioria dos cargos foi instituída

Rosa Costa, BRASÍLIA

O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), encabeça os atos que criaram pelo menos 70% dos 181 cargos de direção da Casa que ele diz, agora, querer diminuir. A proliferação das diretorias e seus anexos com salários elevados se deu, sobretudo, entre 2003 e 2005, quando o parlamentar comandou a instituição pela segunda vez.

Sarney multiplicou, por exemplo, a gestão da então Secretaria de Comunicação, quando seu nome foi trocado para Secretaria Especial de Comunicação Social. Hoje o órgão comporta 20 cargos de direção.

A pulverização dos cargos chegou ao ponto de criar uma coordenação do Jornal Semanal, coletânea de notícias divulgada na segunda-feira, repetindo reportagens sobre atividades dos parlamentares divulgadas ao longo da semana e outras tidas como especiais.

Sarney foi ainda pródigo na transformação de várias outras subsecretarias em secretarias. É o caso das secretarias de Biblioteca, Telecomunicações, Comissões, Especial de Informática do Prodasen, Finanças, Orçamento e Contabilidade, Segurança Legislativa e outras. Cada uma delas municiada com subsecretarias e outros cargos anexos - todos considerados de direção.

Na transformação da Subsecretaria de Pesquisa e Opinião Pública para secretaria, por exemplo, as seis funções comissionadas foram transformadas em "funções comissionadas de Secretários de Coordenação e Execução", nível FC-8, elevando seus ocupantes à categoria de "diretores adjuntos".

Segundo a assessoria de Sarney, a proliferação de cargos na época se justificava. A área administrativa do Senado apresentava pacote de demandas de cargos, o que era referendado pelos senadores da comissão diretora da Casa. De acordo com a assessoria, "eram vistos como meros atos burocráticos".

Ex-presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) encabeça ato de 2006 que modificou a estrutura da Secretaria-Geral da Mesa, abrindo várias subsecretarias, entre elas a Subsecretaria de Revisão Taquigráfica do Plenário.

O atual ministro das Minas Energia, Edison Lobão (PMDB), deixou igualmente suas marcas nos três meses em que ocupou a presidência do Senado, quando da renúncia do então titular Jader Barbalho (PMDB-PA), em 20 de julho de 2001. Lobão entregou o cargo ao senador Ramez Tebet, dia 21 de setembro. Mas antes ele transformou a subscretaria de Recursos Humanos em Secretaria de Recursos Humanos e com isso promoveu João Carlos Zoghbi, marido da sua chefe de gabinete, Denise Zoghbi.

João Carlos Zoghbi deixou a secretaria na semana passada porque não deu explicações razoáveis para justificar o empréstimo de um apartamento funcional a seu filho.

ESTADÃO

sábado, 14 de março de 2009

O governo encalacrado

O verão chega ao fim, quase se foi um quarto do ano e o governo continua encalacrado, sem saber como enfrentar uma crise muito maior do que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva queria admitir até há pouco tempo. A notícia da demissão de 43 mil trabalhadores pela indústria paulista em fevereiro - 236 mil em cinco meses - foi apenas mais uma indicação da gravidade do quadro. O nível de emprego caiu 2,1%. No mesmo dia, quinta-feira, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou as demissões do setor industrial em janeiro, com redução de 1,3% na mão de obra ocupada. Quem quisesse mais informações negativas sobre o setor teria o suficiente para se fartar: 54% das empresas industriais já demitiram e apenas 13% preveem contratações, segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Mas o presidente da República parece ter-se incomodado, mesmo, foi com as 4.200 demissões na Embraer. É muito mais fácil fazer barulho com uma empresa bem conhecida, ex-estatal e obviamente financiada (como tantas outras) pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Fácil e possivelmente lucrativo, em termos eleitorais.

Com essa escala de preocupações, dificilmente o governo poderia ter produzido um plano eficiente para enfrentar a recessão. As ações, desde o fim do ano, foram picadinhas, decididas como respostas a lobbies setoriais. O corte de impostos facilitou as vendas de automóveis. O Banco do Brasil comprou um banco especializado em crédito para o mercado de veículos e o BNDES facilitou a união de dois grandes grupos industriais, como se isso fosse fundamental para sustentar a atividade econômica. Nenhum dos dois negócios foi bem explicado, mas, para o conjunto da economia, os problemas continuam. O mercado externo encolheu, os financiamentos escassearam e os exportadores passam uma fase difícil. O Banco Central tem procurado apoiá-los com a liberação de dólares para empréstimos, mas o Executivo não definiu nenhuma política séria para fortalecer a exportação, ignorando seu efeito multiplicador.

Não há mais como negar a extensão da crise. A economia encolheu no quarto trimestre. Segundo a primeira estimativa do IBGE, o Produto Interno Bruto (PIB) diminuiu 3,6%. Quando os dados forem revistos, talvez se encontre um número menos feio, mas o dado essencial não será alterado nem serão anuladas, por mágica, as demissões dos últimos meses.

Atropelado pelos fatos, o governo foi forçado a reconhecer uma situação mais grave do que admitia até recentemente. A economia, disse o ministro da Fazenda, Guido Mantega, talvez não cresça 4% em 2009. Foi uma notável adesão ao ponto de vista dominante entre as pessoas toleravelmente informadas. Mas e daí? É preciso agir em várias frentes, mas o governo não estava preparado. A crise desmontou rapidamente a previsão orçamentária. A saída mais fácil, mas não a mais prudente, será a redução do superávit primário previsto para o ano - aquele dinheiro posto de lado para o pagamento de juros. Um governo mais habituado à seriedade fiscal teria logo trabalhado para adiar os aumentos salariais programados para este ano - e para os próximos, de fato, porque acréscimos na folha são permanentes. Até sexta-feira não havia, no Executivo, acordo a respeito do assunto. Retirar ou adiar um benefício salarial de 1 milhão de servidores pode custar caro, politicamente. Do outro lado do problema - como criar empregos e ativar a economia - o governo continuava tentando dar uma forma à ideia, também eleitoreira, de construir casas para entregar por preço simbólico a centenas de milhares de famílias pobres. Como é muito mais difícil montar um programa desse tipo do que iniciar uma ação de estímulo à construção civil, a administração federal permanece atolada no planejamento.

Fora dessas ações, nada ou quase nada, além de muito discurso. O presidente Lula não sabe como enfrentar os problemas no Brasil, mas tem muitas ideias de como consertar a economia americana e reordenar a finança internacional. Viajou para os Estados Unidos para dar a receita ao presidente Barack Obama. No dia 2, na Inglaterra, apresentará suas fórmulas na reunião do Grupo dos 20.

A situação do Brasil ficará melhor, é claro, se a economia global se aprumar, mas não tem sentido ficar à espera dessa mudança. A crise global é o maior desafio, mas não desculpa a inoperância do governo brasileiro.

ESTADÃO

domingo, 8 de março de 2009

Respostas à crise: usos do PAC

"Há coisas que nós sabemos que sabemos, há coisas que sabemos que não sabemos, há coisas que não sabemos que sabemos e há coisas que não sabemos que não sabemos." A tirada foi utilizada por um aprendiz de filósofo da era Bush, Donald Rumsfeld, que não conseguiu se manter como ministro da Defesa de seu país. Talvez porque houvesse coisas em demasia que ele não sabia que não sabia, combinadas com outras que ele sabia que sabia, mas não lhe era possível reconhecer de público.

Na grave crise que ora vive a economia mundial - a mais globalmente sincronizada retração econômica desde os anos 30 do século passado - também é possível identificar esses quatro tipos de "coisas", e muitos "Rumsfeld-types" nos mundos das finanças, da economia e da política. Afinal, a dúvida é da natureza humana e o futuro, sempre incerto. E como escreveu Fernando Pessoa, "todas as frases do livro da vida, se lidas até o final, terminam numa interrogação". Em espanhol, dizem com orgulho alguns amigos "castellanos", também começam, com o sinal de interrogação invertido. Lembrança, talvez, de que perguntas devem ser feitas antes, e não depois da ocorrência de eventos desastrosos.

Muitas perguntas sobre as quatro possibilidades "rumsfeldianas" no que diz respeito a riscos não foram feitas de forma clara por mercados financeiros, governos (e suas agências), enquanto o mundo vivia o auge (2003-2007) do mais intenso e amplo ciclo de expansão da história moderna. Agora, em plena crise, as perguntas mais relevantes são menos relacionadas às causas da crise, importantes como sejam, e mais ligadas à natureza e à qualidade das respostas - nacionais, regionais e globais, que governos (e mercados) podem e devem dar à crise com vista à sua superação e à retomada gradual do crescimento.

O restante deste artigo se restringe a um tema especifico: os possíveis usos do PAC (o plural é deliberado) como um dos elementos do conjunto de respostas do Brasil não só para enfrentar a crise atual como para nos reposicionar mais favoravelmente na região e no mundo à medida que a crise global vá sendo enfrentada e eventualmente superada ao longo dos próximos trimestres ou anos.

Escrevo no mês seguinte à apresentação dos "novos números" do PAC, originalmente apresentado dois anos atrás, no início de 2007, como um apanhado de tudo o que já vinha sendo realizado ou planejado não só no orçamento de investimentos do governo federal (vale lembrar, algo em torno de apenas 1% do PIB), nos planos das empresas estatais, bem como nos investimentos privados então planejados para 2007-2010. Este somatório incluía, conforme a apresentação de 2007, nada mais, nada menos que 1.646 "ações de governo a serem monitoradas" de forma centralizada na Casa Civil, das quais 912 seriam "obras" e 734 "estudos e projetos em andamento". Seu valor era estimado em R$ 504 bilhões, a esmagadora maioria investimentos que empresas estatais estavam, em fins de 2006, contando realizar no triênio 2007-2010.

No início de 2008, a apresentação da avaliação do PAC havia aumentado para mais de 2 mil as ações do governo sendo monitoradas no âmbito do PAC (mais de mil obras e outros tantos estudos e projetos em andamento). Agora, início de 2009, o País toma conhecimento de que o governo decidiu adicionar R$ 132 bilhões para o triênio 2007-2010, levando o total de R$ 504 bilhões para R$ 646 bilhões, além de elevar a estimativa de gastos do programa após 2010 de R$ 189 bilhões para R$ 502 bilhões, apresentando o PAC como um programa de R$ 1,148 trilhão em seu conjunto, para 2007-2013. Para muitos, puro keynesianismo contracíclico.

Mas é difícil evitar a percepção de que o PAC vai aumentando em número de obras, projetos e estudos em andamento e, especialmente, no seu valor total estimado para os sete anos que vão de 2007 a 2013 (!), porque, pelos critérios adotados pelo governo, são considerados novos investimentos todas as obras que, mesmo já previstas ou conhecidas ou planejadas e executadas por Estados, ainda não haviam sido incorporadas ao PAC. Como escrevi neste espaço há cerca de um ano, "o PAC é tudo, no PAC tudo cabe". Poderia adicionar: "É como um generoso, compreensivo e abrangente coração de mãe." Conforme bem ilustra texto recente da portaria de órgão da Presidência da República que define o PAC como "um instrumento de universalização dos benefícios econômicos e sociais para todas as regiões do Brasil".

Ora, é sabido que quando tudo é prioritário nada é prioritário. Desde pelo menos os anos 1950 (primórdios do BNDES e da Petrobrás, governo JK) se sabe da importância da seletividade e do critério na escolha dos projetos. E mais importante: capacidade de execução, eficiência no gerenciamento e cobrança de resultados. O papel do investimento público pode ser fundamental para romper certos pontos de estrangulamento em infraestrutura, para sinalizar novas oportunidades de investimento ao setor privado, para sugerir áreas em que ambos, público e privado, podem atuar conjunta ou complementarmente. Os programas Brasil em Ação/Avança Brasil, do governo FHC, definiram, após cuidadosos estudos, entre 40 e 50 projetos prioritários. O modelo de gerenciamento dos projetos, conduzidos pela equipe chefiada com competência e profissionalismo por José Paulo Silveira, com sua longa experiência na Petrobrás, é hoje utilizado com sucesso por vários Estados brasileiros que também definiram relativamente poucos projetos prioritários, compatíveis com a capacidade de execução do Estado e suas empresas.

A contribuição do PAC para o Brasil depende, a meu ver, não de seu uso como instrumento de retórica política associada à campanha eleitoral que se avizinha, mas de maior seletividade, efetiva gestão e resultados operacionais concretos sobre os níveis e a eficácia do investimento público e privado - um dos maiores desafios de médio prazo a enfrentar na área econômica.

Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
E-mail: malan@estadao.com.br
ESTADÃO

quarta-feira, 4 de março de 2009

Um prodígio do ''padim'' Cícero do Juazeiro

"Até outro dia quem entrava no governo olhava o que foi feito no outro: nada", disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao passar por Florianópolis, em mais uma viagem pelo País para patrocinar a campanha presidencial daquela que ele diz ser sua candidata à sucessão, a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ainda segundo Lula, quem vier depois dele dirá: "Eu vou ter que trabalhar porque o paradigma é outro." Modéstia inclusa!

Essas duas frases reúnem características da índole do chefe do governo federal: a competência de comunicador, a pouca familiaridade com o verdadeiro significado das palavras (apesar de haver decretado uma reforma ortográfica), a autocomplacência e a verve. A megalomania e a graça de ambas não são defeitos do presidente, mas fazem parte da receita milagrosa de sua permanência no topo do poder e no alto do pódio do prestígio popular - algo raro nas democracias contemporâneas, em que os meios de comunicação social de massa criaram uma sociedade que aplaude e dilapida, parodiando o verso do poeta Augusto dos Anjos: "A mão que afaga é a mesma que apedreja." No meio do segundo mandato, período no qual normalmente os reeleitos são submetidos à execração popular, Lula é amado pelo povo, et pour cause, bajulado pela elite política de antanho, de sempre e, ao que tudo indica, do futuro próximo e longínquo.

Seu governo poderia estar sendo um paradigma - como propugna - se não tivesse, como tantos outros o fizeram antes dele, cedido às tentações do mandonismo desabrido, da fortuna fácil e da glória sedutora. E extirpasse, em vez de manter (até radicalizar), práticas daninhas ao bem-estar comum e à boa governança pública. Se o "mudar tudo o que está aí" houvesse promovido a demolição do sistema de corrupção que controla e domina o Estado brasileiro desde Tomé de Souza, com raras exceções históricas, aí, sim, seu governo seria um paradigma.

Mas o que se viu foi o contrário. Após trocar o terrorismo suicida da implosão do capitalismo selvagem pela acomodação das velhas práticas ao discurso neopopulista para ganhar a eleição presidencial de 2002, Lula percebeu que na gestão pública essa política de conciliação entre opostos para manter o centro intacto seria o rumo mais fácil a seguir. Assim, não sofreria as atribulações da má fortuna de que foram acometidos idealistas que sacrificaram poder e vida para não abandonar seus ideais.

Diante das evidências tornadas públicas da adesão de seus companheiros de partido a práticas do tempo do onça da malversação do erário com a competente, mas amoral, compra de apoio da base política no Congresso, o presidente preferiu adotar o "não ouvi, não vi, portanto, não sei e não preciso pensar", num ganancioso e pernicioso cartesianismo às avessas. Aliás, essa reação ao óbvio ululante do "mensalão" já resultava de uma postura anterior: a troca da governança pela governabilidade. Ao manter o loteamento feudal da máquina pública federal entre os "novelhos" sócios no poder, o chefe do governo adotou a inércia comodista como rotina e substituiu a ideologia do porvir pelo pragmatismo do passado: cimentou sua base de apoio com a argamassa usada para erigir o Estado brasileiro desde o reinado dos coronéis da Guarda Nacional até a ditadura dos generais fardados.

Essa fusão de autoritarismo com paternalismo, criando a síntese hegeliana da sístole com a diástole, dialética de que falava o general Golbery do Couto e Silva, produziu um País diferente, mas que não pode ser chamado de novo. Este país diferente em que vivemos há seis anos difere do que tem cinco séculos por não haver mais lugar nem para a falsa ira. Quando o senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) denunciou seus pares como predominantemente corruptos, todos, inclusive os altos figurões da República lulista, fizeram-se de humilhados e ofendidos. Mas ninguém ergueu a voz sequer para ameaçar processar o ofensor. Ao contrário de seu mestre Maluf, exímio fingidor da indignação de quem defende a própria honra, ainda que não pratique seus preceitos básicos, os atuais príncipes não se moveram, fiéis às novas leis do convívio político, segundo as quais o segredo da sobrevivência no poder é manter-se agachado, mesmo se puxarem o tapete sob o qual se escondiam suas cabeças coroadas.

Quando o presidente foi pilhado fazendo campanha eleitoral para a candidata que ele diz ser a sua, a Advocacia-Geral da União (AGU) não alinhavou evidências de que aquele era um encontro de rotina de gestão pública. Preferiu acusar o adversário mais notório de fazer o mesmo. Ninguém duvida que o governador José Serra (PSDB) seja capaz de recorrer aos estratagemas adotados por Lula e Dilma. O que é cada vez mais duvidoso é que a democracia seja hoje, no Brasil, um jogo de regras limpas ditadas por uma justiça maior que se abate sobre a jugular dos que a desafiam.

A ameaça do senador Wellington Salgado (PMDB-MG) de revelar "podres" de Jarbas Vasconcelos, em vez de listar contra a entrevista dele as qualidades de seus colegas de legenda, é de natureza idêntica. Sob o signo do neocoronelismo socialista dos petistas, não importam as virtudes que professam sem praticar, mas os vícios de todos. Esta é a principal característica que distingue a administração que promete se eternizar no lulismo atual, herdeira dos vícios de Nova República, ditadura militar, democracia de 1946, Estado Novo, Revolução de 1930, República Velha e dois Impérios.

Diante de tudo isto, fica no ar a constatação de que o governo atual não é paradigma de nada, mas, sim, um prodígio de Antônio Conselheiro ou do padim Cícero Romão Batista, do Juazeiro do Norte: só reflete e ecoa os recônditos da alma profunda do Brasil para perpetuar seus erros e adiar seus anseios.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista.
do Jornal da Tarde

domingo, 1 de março de 2009

Episódios vergonhosos

Durante a realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro, os pugilistas Erislandy Lara e Guillermo Rigondeaux conseguiram burlar a vigilância dos agentes que acompanham as delegações desportivas e artísticas cubanas nas suas excursões pelo exterior - comissários cuja única missão é assegurar que todos voltem para o paraíso castrista - e foram se esconder em Cabo Frio. A escapada durou cerca de duas semanas. Acionado pelo ministro da Justiça, Tarso Genro - a pedido do governo cubano -, o aparelho policial brasileiro se pôs a campo, localizando e detendo os dois cubanos, que não queriam outra coisa que não fossem oportunidades de viver numa sociedade livre, que lhes permitisse desenvolver seus atributos desportivos e profissionais. Três dias depois de detidos, os dois foram colocados num avião, gentil e especialmente cedido pelo caudilho venezuelano Hugo Chávez, e despachados de volta para Havana.

Lá, não foram presos, torturados ou mortos - como acontecia antes com os cubanos que tentavam fugir da ilha e não conseguiam. Os tempos já eram mais amenos e eles foram apenas proibidos de treinar e lutar, ou seja, de exercer a sua profissão.

Aqui o episódio provocou justa indignação. Afinal, o governo brasileiro, por intermédio de seu ministro da Justiça, não apenas colocara a polícia no encalço de dois atletas que não haviam cometido crime algum - no Brasil ou em Cuba -, como os deportara em prazo recorde, entregando-os a um regime que não tem o mínimo respeito pelos direitos humanos e do qual estavam fugindo.

À onda de protestos que se seguiu, o ministro Tarso Genro respondeu com uma saraivada de argumentos fantasiosos, cada um mais esfarrapado do que o outro. Primeiro, declarou que tudo não passava de uma armação da imprensa, que estava usando o episódio para fazer propaganda contra Cuba. Depois, afirmou que os dois pugilistas não haviam fugido nem pedido asilo e, por isso, se encontravam em situação irregular no País.

Por fim, veio o mais deslavado deles: os pugilistas haviam pedido para voltar a Cuba. Ele, Tarso Genro, como ex-exilado, sabia que isso iria acontecer: "depois da fuga vem a saudade da família e a nostalgia da pátria", disse, esquecendo que antes havia negado que os cubanos haviam fugido e solicitado asilo.

Mas a farsa, como se veria, não prevaleceria como verdade histórica.

O pugilista cubano Erislandy Lara, o primeiro a fugir de Cuba, afirma que nunca quis sair do Brasil. Que não queria ficar em Cuba provou cerca de seis meses depois de para lá ter sido devolvido pelo ministro Tarso Genro, quando fugiu da ilha em uma lancha. Está reiniciando, com sucesso, a sua vida de boxeador nos Estados Unidos. Agora, nesta semana, o pugilista Guillermo Rigondeaux, campeão olímpico e mundial dos pesos galo, fugiu para o México e já está em Miami, onde aguarda a regularização de seus papéis para também voltar às atividades profissionais.

Os dois pugilistas deixaram suas famílias em Cuba. Sentem saudades, mas nem em pensamento lhes ocorre voltar para o paraíso castrista onde, segundo Lara, "não há comida e as pessoas sofrem muito". O que querem, isso sim, é tirar de Cuba suas mulheres e filhos. Outra falha no enredo fabuloso do ministro Tarso Genro.

Menos de dois anos depois do vergonhoso episódio da devolução dos lutadores cubanos ao domínio do ditador Fidel Castro, diante de caso "aparentado", o ministro Tarso Genro teve comportamento totalmente diferente, mas não menos indecente: atropelou uma decisão do Comitê Nacional para os Refugiados, antecipou-se a um julgamento do Supremo Tribunal Federal e concedeu asilo ao terrorista italiano Cesare Battisti. Desta vez, o exilado não sentia saudades da família nem nostalgia da pátria. Também não havia sido, como os dois cubanos, declarado "traidor da pátria" pelo chefe do governo do seu país - uma democracia exemplar. Fora, tão somente, condenado pela Justiça italiana pelo assassinato de quatro pessoas, entre outros crimes - todos cometidos em nome do extremismo de esquerda.

Por que o governo brasileiro concede asilo a um assassino condenado pela justiça de um país democrático e nega-o a dois impolutos fugitivos de uma ditadura decrépita?

O presidente Lula poderia explicar o que seu ministro não explicou?

ESTADÃO

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Battisti é nosso!

Em matéria de abrigo político o Brasil faz jus ao título de "curva de rio": todo o lixo do mundo encosta aqui. Quem primeiro nos alçou às manchetes internacionais foi Ronald Biggs, nos anos 70 do século 20.

Para quem não conhece a sua história, vale lembrar: Biggs era um dos membros da quadrilha que assaltou o trem pagador, em 1963, na Grã-Bretanha. Essa incursão ficou conhecida como "o crime do século 20". Foi preso e condenado. Fugiu pouco tempo depois. Andou pelo mundo e acabou dando as caras no Brasil, na década de 70. A Inglaterra não poupou esforços para tê-lo de volta. Tentou extraditá-lo. Impossível. O Brasil não tinha um tratado específico para tanto. Procurou, então, fazer com que ele fosse expulso. Nada feito. Biggs alegou que teria um filho com uma brasileira e isso bastou para sustar o processo.

Por mais de 30 anos, ele foi hóspede de nosso país. Como celebridade que era, tratou de viver de sua imagem. Camisetas, chaveiros, canecas, tudo pôde ser comercializado com a sua estampa. Alugava até mesmo algumas horas de convivência consigo.

Enquanto tudo isso ocorria, a imagem do Brasil no exterior caminhava para o fundo do poço. Nos livros e nos filmes, o grande sonho de todos os personagens que cometiam algum crime era se refugiar aqui. Nossas leis e nossos juízes - segundo se acreditava no mundo inteiro - eram por demais condescendentes com os bandidos estrangeiros. Não éramos, evidentemente, um país sério...

Até que certo dia Ronald Biggs avisou que voltaria para casa. Isso ocorreu já na presente década. Consternação geral. O simpático bandoleiro preferiu viver numa prisão inglesa a permanecer em liberdade no Brasil. Como pode?

Pois bem, eis que surge agora um substituto à altura. Trata-se de Cesare Battisti, um notório terrorista italiano. Ele não possui o charme de seu antecessor, é verdade, mas conta com nada menos do que quatro assassinatos em seu currículo. Ninguém sabe ao certo por qual razão ele veio morar aqui. Mas, sem dúvida, o antecedente aberto pelo inglês pesou em sua decisão.

O Brasil não o desapontou. Tão logo foi descoberto e preso - numa operação policial internacional -, numerosas vozes se levantaram em sua defesa. Deu certo. O governo brasileiro acaba de conceder a Battisti o status de refugiado político.

O italiano já se preparava para deixar a cadeia e assumir a carreira de escritor - que seria, claro, alavancada por sua recém-adquirida popularidade - quando percebeu que, desta vez, não seria tão fácil. O Supremo Tribunal Federal (STF) recusou-se a libertá-lo. Em vez disso, tratará de julgar o mérito da atitude tomada pelo Poder Executivo.

Como ficarão, então, o ministro da Justiça, que tomou a decisão, e o presidente da República, que correu para respaldá-la?

Se o STF decidir anular a decisão, ficarão muito mal, obviamente. Bem-feito. Tanto Lula como Tarso Genro terão de compreender que os brasileiros, em geral, há muito tempo deixaram para trás a vocação malandra e o espírito galhofeiro.

Caso contrário estaríamos todos aplaudindo a decretação, pelo governo nacional, da impunidade vitalícia do bandido italiano e também de todos os demais que por aqui aportarem.

Mas a questão vai muito além. Nossas relações com a Itália, no momento, estão bastante deterioradas. A simples concessão do status de refugiado político a alguém condenado por crimes de sangue já representou, por si só, um tapa na cara da opinião pública italiana. Se os italianos, no sentido contrário, tivessem oferecido abrigo político a alguém como Fernandinho Beira-Mar, nós também estaríamos possessos.

Mas nosso imprevisível e desconcertante ministro não se contentou com isso e foi muito além. Nas justificativas de seu ato fez questão de reiterar que os julgamentos de Battisti na Itália não foram justos nem obedeceram ao devido processo legal; e que, caso fosse devolvido, Battisti sofreria perseguições políticas pelas autoridades italianas.

Ora, os italianos têm todos os motivos para estarem indignados. Num único documento o senhor Tarso Genro conseguiu pôr em dúvida a isenção e a eficácia do Poder Judiciário italiano e menosprezar a capacidade da democracia italiana de coibir qualquer tipo de discriminação ou desejo, do poder constituído, de perseguir os seus desafetos.

Como desabafou um ministro italiano: "Não dá para admitir que o Brasil ou Lula venham nos dar lições sobre Justiça e Democracia." E ele tem razão. A democracia italiana existe desde o final da 2ª Guerra Mundial e, apesar da instabilidade dos seus gabinetes, tem sido mantida sem nenhuma interrupção.

O Brasil, no mesmo período, teve 4 presidentes depostos, 1 que renunciou ao posto, 1 que se matou, 1 que sofreu impeachment, 4 vices que assumiram em caráter permanente e 5 presidentes que chegaram ao poder sem votos.

De fato, tais circunstâncias nos descredenciam, de início, a pretender dar aulas de democracia a quem quer que seja. Só mesmo Genro não percebe isso.

Lula, ao defender a atitude tomada por seu estabanado ministro, como sempre extrapolou: declarou que o abrigo concedido a Battisti é uma questão de "soberania nacional".

Trata-se de um argumento apelativo. Tal qual uma meia de náilon, ele serve em qualquer pé. E é geralmente utilizado por demagogos e populistas. Já serviu, no nosso passado, para justificar o monopólio da Petrobrás ("O petróleo é nosso"), a existência de empresas estatais, o desrespeito contumaz aos direitos humanos, o nacionalismo econômico, o protecionismo comercial e uma série de outras bandeiras por si só indefensáveis.

Há, é claro, outras formas mais maduras de reafirmar a nossa independência, a nossa autonomia e a nossa soberania.

Não precisamos, para tanto, acolher todos os terroristas e assaltantes de banco que chegam às nossas praias.

Respeito é algo que se dá, não que se pede. Se o queremos, temos antes de nos dar a ele.

João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado
E-mail: j.mellao@uol.com.br


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